Sábado, 23 de Junho de 2018
Valtair José de Souza, o Carioca, luta para retomar a guarda do filho de 5 anos (Foto: Adriano Vizoni/Folhapress) – Folhapress
No puxadinho de Valtair José de Souza, 50, há duas camas, mas ele dorme somente no sofá. Os dois colchões, abarrotados de brinquedos, ocupam a maior parte do espaço, mas nenhuma criança nunca dormiu lá desde que ele se mudou, há cerca de um ano, para essa casa abandonada a poucos metros do parque Ibirapuera, na zona sul de São Paulo, e que foi invadida por cerca de 30 famílias.
Dos seus filhos, Felipe, 5, vive há um ano e meio em um abrigo da prefeitura, e Joana, 2, sumiu com a mãe e ele não a vê há mais de um ano. Os nomes das crianças são fictícios.
No puxadinho, as camas preparadas para receber as crianças são uma forma de Carioca, como Valtair é conhecido, manter a esperança de recuperar a guarda dos dois filhos. Ele, que sobrevive fazendo bicos, tira de uma pasta surrada todos os documentos originais dos filhos: as certidões de nascimento, avaliações da escola e o RG do mais velho, além da carteira de vacinação com as doses em dia.
Ao lado da cabeceira de uma das camas, está apoiada a bicicleta de Felipe, que Carioca teve que arrastar até em casa no dia em que o menino foi levado a um abrigo, após a Justiça o ter destituído do poder familiar. “Ele foi comigo ao fórum nesta bicicleta”, lembra Carioca, sobre o dia que viu o filho pela última vez.
A decisão judicial de colocá-lo sob tutela do estado veio três meses depois de o pai ter sido preso em flagrante sob a acusação de agredir o filho. No registro feito na delegacia, testemunhas o acusaram de arrastar o menino pela calçada e lhe dar socos na cabeça, além de jogá-lo com violência no concreto. O relato também diz que ele estava embriagado.
O pai foi acusado de nove crimes, entre eles, maus-tratos e violência doméstica —cumpriu três meses de detenção. Carioca, porém, tem outra versão. Ele conta que, naquele domingo de setembro de 2016, havia levado o filho para acompanhá-lo, enquanto trabalhava como guardador de carros na esquina das ruas Augusta e Estados Unidos.
A confusão teve início quando ele impediu o segurança de um restaurante a limitar vagas de estacionamento com cones. “Trabalho lá há mais de dez anos e acho injusto guardar vagas em local público.”
Segundo Carioca, o segurança era um policial civil que fazia bico na folga e, na discussão, partiu para cima dele com socos e pontapés. Um pouco antes da briga, diz que Felipe chorava porque queria comer pipoca, mas ele não tinha dinheiro para comprá-la.“Quando vi, já estava na delegacia sendo acusado de bater no meu filho”, diz ele, que nega ter agredido o menino.
Da delegacia, Felipe foi levado para o Hospital das Clínicas, onde foi submetido a exame de corpo de delito que não apontou nenhum sinal aparente de agressão. A defensora pública que representou Carioca no processo ressaltou ainda que nenhuma das duas testemunhas citadas no registro policial afirmaram terem visto as agressões, apenas ouvido relatos sobre isso.
Carioca diz que uma das testemunhas era namorada do policial de folga e também trabalha no mesmo restaurante. No momento da prisão, o pai ainda se recuperava de um outro trauma, vivido meses antes. Ele conta ter procurado por dias o filho levado da rua de casa por uma desconhecida.
Na época, a família morava em um cortiço na região da cracolândia e Felipe, então com 3 anos, tinha ido comprar balas no bar da esquina e não voltou mais. O menino pediu insistentemente pelos doces quando viu o pai voltar da rua com o bolso cheio de moedas.
Imagens de câmeras de segurança de comércios na região captaram o momento em que a criança foi levada da porta de casa, no colo, por uma mulher idosa. “Dava para ver as mãozinhas dele apontando e pedindo para voltar para casa”, lembra o pai.
O menino foi encontrado dez dias depois em um abrigo de Campinas, no interior do estado. O pai conta que a idosa que o levou enfrentou resistência do marido em manter a criança em casa e decidiu levá-lo até o abrigo.
No relatório do Ministério Público sobre o sumiço de Felipe, foi citada possível tentativa de venda da criança pela mãe, apontada como usuária de drogas.
Alguns dias depois, o menino foi devolvido ao convívio com a mãe até o domingo em que o pai foi preso em flagrante acusado de agredi-lo em público.
Após cumprir os três meses de detenção e ser solto, Carioca assumiu sozinho os cuidados do menino e decidiu avisar a Justiça que estava com a guarda.
Foi quando, diz, levou Felipe montado em sua bicicleta ao fórum João Mendes e de onde saiu sem o filho, há dois anos. “Agi de acordo com a lei e me tiraram meu filho.”
No parecer da Promotoria que embasou a decisão judicial, a transferência do menino para um abrigo e a proibição dos pais de visitá-lo foram atribuídas às suas más condições de higiene. “Na ocasião, Felipe estava extremamente sujo, com os dentes cariados, além de não conseguir se comunicar”, detalhou o relatório.
A vara de infância e juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo foi procurada, mas não quis comentar o processo, por esse estar em sigilo, já que se trata de um menor de idade. A Defensoria Pública de São Paulo também não atendeu pedido de entrevista sobre o caso pelo mesmo motivo.
No mesmo documento, o Ministério Público afirma que o melhor destino para o menino é ser adotado por uma nova família, para desespero de Carioca, que, desde a decisão, tenta juntar evidências para evitar perder o filho de vez.
Ele mostra, com lágrima nos olhos, trecho do parecer da escola municipal que o filho frequentava: “Não constatamos nenhum sinal de maus tratos ou até mesmo falta de higiene da criança”. “Sempre cuidei desse menino, o levava para a escola todos os dias de manhã, fazia sua lancheira.”
Desde o fim de janeiro, Felipe vive em um abrigo na Bela Vista, na região central, para onde foi transferido, enquanto seu pai aguarda recursos na Justiça para impedir que ele entre para a fila da adoção.“Sou pobre, mas tenho direito de ter meus filhos comigo.”
Carioca mostra o pacote de fraldas que comprou para dizer que também aguarda decisão judicial para obter a guarda da filha de dois anos, que está com a mãe em lugar desconhecido.
Ele conta que, na última vez que viu a menina, estava suja e descuidada.“A Justiça privilegia as mães, mas o pai também tem direito de lutar pelos seus filhos”, diz, sentado na cama da filha com uma pelúcia da porquinha Peppa nas mãos.
Folha de São Paulo