Foto: @reginasousapiaui/Instagram
O Brasil é um país onde proliferam exemplos de mau uso de dinheiro público ao longo da história, mas ainda assim sempre é possível se surpreender com alguma modalidade diferente de desvio de recursos do contribuinte. A última veio do Piauí, onde um relatório do Tribunal de Contas do Estado encontrou mais de 1 000 mortos cadastrados em um programa de alfabetização tocado pelo governo estadual nas gestões de Wellington Dias (PT) e sua sucessora, Regina Sousa (PT). Além dos falecidos, a auditoria descobriu que entre os matriculados havia mais de 5 500 funcionários públicos — que, pela natureza da função, que exige concurso, devem saber ler e escrever — e mais de 1 000 jovens de até 18 anos, que não poderiam estar inscritos em um programa cujo foco é o público adulto. Tudo isso intermediado por empresas contratadas sem comprovar nenhuma experiência com serviços educacionais e com endereços para lá de suspeitos.
A longa lista de irregularidades foi detectada em uma auditoria feita entre março e junho deste ano. A avaliação do TCE é que o programa, planejado para consumir 342 milhões de reais, admitiu alunos e instituições que não atendem aos critérios e que há um alto risco de superfaturamento e dano aos cofres públicos. Lançado em julho de 2021, quando o governo estava sob o comando de Dias — que renunciou em março para disputar o Senado —, o Proaja visa alfabetizar 200 000 pessoas através de convênios com instituições privadas. O número corresponde à metade dos adultos analfabetos do Piauí, estado onde 16% da população adulta não sabe ler nem escrever.
O ponto central do caso está nas empresas contratadas para prestar o serviço. Das 39, em doze não há funcionários, cinco não tiveram sua sede encontrada pelos auditores e pelo menos uma dezena não possui capacidade operativa educacional, segundo o relatório. O TCE também classificou como ineficiente o monitoramento da FGV, contratada pela Secretaria da Educação para acompanhar o programa. A evidência de superfaturamento se dá porque o valor é investido de acordo com o número de alunos e entidades — cada alfabetizado recebe 440 reais como incentivo e auxílio para materiais, e cada empresa recebe 1 310 reais por estudante.
Em sua defesa, o governo aponta o dedo para as empresas (como se não fosse sua função escolher e fiscalizar a atuação delas). Diz que a busca de alunos é feita por essas parceiras e que os nomes apresentados pelo TCE como irregulares estão de fato na lista de 340 000 inscritos no programa, mas não entre os 170 000 aprovados até agora. Logo, os 58,8 milhões de reais já investidos foram pagos, na versão do estado, somente a alunos e instituições que atendem aos critérios necessários. A secretaria também defende a tese de que as empresas são confiáveis mesmo sem sede porque, em muitos casos, a alfabetização é feita na casa das pessoas, ou em igrejas e associações locais. O secretário de Educação, Ellen Gera de Brito Moura, lembra que a idade do público-alvo e a sua extensão, que se propõe a chegar a áreas remotas do estado, dificultam o monitoramento dos dados. “Se identificarmos que alguma matrícula foi forjada a descredenciaremos”, diz. Se o estado não convencer o TCE em sua defesa (evidentemente, vai ser bem complicado justificar os alunos mortos), o negócio será suspenso.
Elaborado por um órgão de controle habilitado para isso, o relatório tem potencial para se transformar em munição eleitoral. Candidato ao Senado, Wellington Dias tenta emplacar o seu ex-secretário Rafael Fonteles (PT) no governo. Do outro lado, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP), apoia Silvio Mendes (União Brasil), principal postulante a acabar com a hegemonia de vinte anos do PT no Piauí. Segundo pesquisa Real Time Big Data do final de junho, Mendes tem 39% e Fonteles, 26%, um bom desempenho num estado onde o petismo é muito forte. “Pode ser um dos maiores escândalos de corrupção da história do Piauí”, dispara o deputado estadual Gustavo Neiva (PP), aliado de Ciro. Nas redes sociais, rivais do petismo rebatizaram o programa de “Proajad — Programa de Alfabetização de Jovens, Adultos e Defuntos”. Independentemente da repercussão política, caberá aos órgãos competentes punir as irregularidades praticadas e as responsabilidades de cada um. Afinal de contas, as suspeitas apontadas são consistentes e graves na direção de uma tentativa de dilapidar os cofres públicos. Coisa de gente muito viva, por sinal.
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