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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Golpe Branco: O colapso do presidencialismo no Brasil

Quarta, 02 de Fevereiro de 2022

O sistema de governo que oficialmente vige, hoje, no Brasil, circunscrito às prescrições e regras democráticas, é o presidencialismo – consagrado na Constituição de 1988 e referendado pela ampla maioria do povo brasileiro por ocasião do plebiscito de 1993 (quando as opções parlamentarista e monárquica foram prevalentemente vetadas). 

Assim, por vontade expressa e indubitável do povo brasileiro, ficou ratificado, desde então – na linha da tradição –, que o comando do governo deve ser prerrogativa exclusiva do Presidente da República, o chefe do Poder Executivo, a quem cabe, com plena legalidade e legitimidade, dentre outras atribuições, a administração do orçamento do país (constituído pelos impostos pagos pelos cidadãos), com toda a autoridade e responsabilidade que lhe são conferidas pela força do sufrágio popular e pela letra da Carta Magna. Apenas e tão somente ao Presidente, repita-se – e, por delegação deste, aos Ministros de Estado –, compete essa função. 

A ninguém mais! 

Qualquer tentativa de restrição, bloqueio ou usurpação desse direito inalienável de governança, diretamente atribuído, pela sociedade, à Presidência da República (e não a outro Poder!), implica em grave subversão – explícita ou velada – à ordem constitucional e à vontade manifesta do único e genuíno soberano (fonte de todo o poder) em uma verdadeira democracia, com perigosa ameaça de ruptura ao Estado Democrático de Direito.

Pois foi justo isso que ocorreu por decisão do Congresso Nacional, no momento em que foi aprovada a Emenda Constitucional n. 86/2015, que tornou as emendas parlamentares individuais impositivas (obrigatórias de liberação pelo Governo), tal qual aquelas, mais substantivas, geridas pelo eminente relator do orçamento, cujos valores somados totalizaram, só no ano de 2021 (e isso sem contar a grana dos Fundos Partidário e Eleitoral!), quase 30 bilhões de reais para serem gastos à vontade pelos políticos, conforme suas prioridades individuais ou corporativas (inclusive as de motivação nada republicana) – e sem mais as tradicionais e inescapáveis barganhas que eram compelidos a cumprir, amiúde, junto ao Executivo. 

Ou seja: desde lá, deputados e senadores – que não foram votados para tal finalidade (!) – passaram a possuir mais poder sobre o uso dos recursos públicos disponíveis (não carimbados) que o próprio Governo (eleito para a função!), num golpe branco (e mortal) contra o presidencialismo, justo naquilo que constitui o cerne e a razão de ser de sua preferencial proclamação. 

Nem mais de “coalizão” (como cunhado há trinta anos pelo sociólogo Sérgio Abranches) pode ser reputado o presidencialismo brasileiro, já que a própria e famigerada praxe da cooptação de parlamentares por meio da liberação de emendas individuais (que não eram obrigatórias) em troca de seu apoio a projetos do Governo, como ocorria no passado – prerrogativa que conferia amplo poder de negociação ao Presidente da República –, deixou de cumprir o seu determinante  e resolutivo papel.

Vive-se, hoje, por conseguinte, na prática, um falso e ilícito “parlamentarismo” (cínica e eufemicamente apelidado de “semi-presidencialismo”), nitidamente contrário à patente vontade popular e afrontosamente insubmisso à Constituição Federal, dominado por partidos fragmentados e sem projetos de nação, transformados em meros bunkers de negócios (quando não, em organizações criminosas), com o presidente da Câmara alçado à condição de um efetivo “Primeiro Ministro” e o Presidente da República, apesar de toda a legitimidade conferida pelo  voto popular, reduzido ao papel de reles “bobo da corte”, permanentemente sujeito aos  arroubos e chantagens urdidos nas coxias de Brasília pelas chefias das duas Casas do Congresso, sem mais qualquer poder para fazer cumprir aquilo que se comprometeu, abertamente, perante toda a sociedade – e tudo (para agravar ainda mais o quadro) com o endosso indecoroso de um Supremo Tribunal Federal politicamente faccioso e paradoxalmente transgressor da ordem constitucional (à qual deveria zelar como dever), sócio de primeira instância na ação  orquestrada de usurpação do poder presidencial. 

A conclusão de toda a trama é que a fórmula pregressa do “presidencialismo de coalizão”, que sustentou por décadas a “Nova República” – e que costurava os acordos de rotina e alguma estabilidade política –, implodiu em definitivo em terra brasilis e já não é suficiente para garantir, ao Presidente da República (como outrora), o apoio recorrente dos parlamentares aos seus  projetos prioritários de Governo, tendo-se invertido, perversamente, num golpe branco, a lógica  da “governabilidade” presente: agora é o Presidente que, na condição de refém, tem de se  submeter aos caprichos dos oportunistas de plantão, sob pena de retaliação massiva e desmoralizante (até de impeachment!) por parte da maioria dos congressistas. 

Tal metamorfose inaugura um novo “modelo” de presidencialismo de fachada, em que o antigo (ainda que deletério) mecanismo de cooptação (fartamente ilustrado pelo fenômeno do Mensalão) cede preferencialmente lugar à chamada (e dissimulada) “conciliação suprapartidária” de interesses, constituída por acordos camuflados de bastidores, predominantemente cabulosos, afastados da percepção e do controle popular e direcionados, em última instância, ao benefício de poucos (oligarquias patrimonialistas) e não do país – com o colapso não apenas do presidencialismo, mas da própria democracia!

Nesse sistema, dadas as premissas requeridas ao manuseio de suas delituosas engrenagens, as credenciais para a ocupação da cadeira presidencial (esvaziada de poder) deixam de repousar no mérito e no caráter do candidato (como supor-se-iam as faculdades primordiais num regime republicano), para se respaldar, unicamente, no compromisso premeditado do aspirante ao cargo para com o conluio e a farsa, a delinquência e a bandidagem – tornando-se, diante das ambições desmedidas da cleptocracia reinante, apenas o seu principal operador e destacado comparsa.  

Um sistema político que, por sua degenerada e espúria configuração, só a um criminoso, de biografia reconhecida, passa a ser dado o condão de poder, com algum “sucesso”, manobrar.

Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).

Fonte: Jornal da Cidade Online

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