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domingo, 11 de dezembro de 2016

Prosa do Domingo: Cobra-cega


Domingo, 11 de dezembro de 2016 

Por François Silvestre
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Na Coluna Plural, do Novo Jornal.

Cabra-cega.

Saltei do ônibus debaixo de uma neblina que imprensava os ossos. O Alecrim, que conhecia de nome e fama, era mais do que pensara.

Maior de tamanho do que imaginara. Mais gente do que jamais vira tantos juntos. Caicó, a maior vista até então, recolhia-se pequenina.

O Diocesano, que fora instrução e Casa, seria apenas retalhos brancos da despedida de inocência. Como nos versos de Navarro: “Vestes pretas cobrem meus pecados mortais./ Roupas brancas, nunca mais”.

Depois, para o Centro. E da Rio Branco para a Casa do Estudante. Uma nova morada? Muito mais do que isso. Uma nova vida pedindo arrancho ao mundo. E a novidade é a descoberta diária, a cumplicidade horária e o alumbramento que se estabelece nas relações da vida com a adolescência.

Casa do Estudante. A fisiologia, secundária. A vida cobrava sonhos. E o estômago não se presta ao sonhar. A bóia era escassa. A bandeja dividida em partes, com poucas delas ocupadas.

Feijão macaça, preto pela idade, em cujo caldo de água e óleo boiavam gorgulhos. Na pequena parte, à direita, uma batata doce. Na parte esquerda, um naco de rapadura. Na parte de cima, a “mistura”, que podia ser farofa de ovo.

Quando faltava água, descíamos até ao Paço da Pátria, onde havia um pequeno cacimbão. Com uma panela de alumínio, amarrada à tampa da cacimba, tomávamos banho.

Ao final da tarde ou início da noite, de roupa trocada, saíamos para a rua. Para o colégio, nos dias comuns; para o passeio nos fins de semana. Não permitíamos a ninguém o direito à piedade. Pobres e dignos, feito um mendigo espanhol. Éramos iguais, mesmo entre conhecidos de famílias ricas, que estudavam nos colégios particulares.

O Salão Nobre, de pobre nobreza, amparava estudos e entusiasmo.

Nossos colégios eram públicos. Tão bons quanto os outros. Atheneu, Pe. Miguelinho, Anphilóquio Câmara. Geralmente os mesmos professores. Disputávamos em pé de igualdade as aprovações nos vestibulares.

Desses colégios; Marista, CIC, CPU, eu vim a ser professor, preparando alunos para o vestibular. Alunos que hoje são muito mais importantes do que eu, e ainda me prestam a homenagem com mimos e elogios. Com amizade e generosa deferência.

Era um tempo de luta. Sem heroísmos. Apenas a oferta que a História faz, a algumas gerações, por escolha do destino, do desafio à edificação de sonhos. E não se edifica um sonho coletivo sem desprendimento e generosidade.

Mas havia uma Pátria. Mesmo dividida. Nos porões, o miasma de sangue e sêmen no útero fedido dos seus cárceres. No escondido das ruas, a penumbra da resistência. “Um estranho cheiro de súplica”.

Se não a Pátria ingênua de Olavo Bilac, do Hino à Bandeira, uma Pátria mendigando amparo. E a crença da feitura.

E hoje, cadê a Pátria? Aí está. Brincando de cabra-cega. Té mais.

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