Sexta, 03 de novembro de 2023
Era previsível — e foi previsto aqui mesmo no GLOBO, entre tantos outros lugares — que as metas traçadas pelo governo na apresentação do novo arcabouço fiscal se revelariam impraticáveis. Cumpri-las dependeria daquilo que infelizmente se tornou anátema nas rodas políticas de Brasília: cortar gastos. Mesmo assim, elas foram reiteradas repetidas vezes pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad — em particular o compromisso de zerar o déficit em 2024, enviado pelo Executivo ao Congresso na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Todos confiaram que, depois do descontrole orçamentário promovido pela PEC da Transição, haveria ao menos grande esforço para reequilibrar as contas públicas. Intenções contam.
Até que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva torpedeou a meta do ano que vem no final de um café da manhã com jornalistas: “Eu sei da disposição do Haddad, sei da vontade do Haddad, sei da minha disposição. (…) [Mas] nós dificilmente chegaremos à meta zero. (…) Se o Brasil tiver um déficit de 0,5%, o que é? De 0,25%, o que é? Nada. Absolutamente nada. Vamos tomar a decisão correta e vamos fazer aquilo que vai ser melhor para o Brasil”. Desde então, o governo se engalfinha em torno do novo compromisso que apresentará à sociedade.
Metas fiscais estão longe de ser “absolutamente nada”, como quer Lula. É por meio delas que o governo informa à sociedade e ao mercado como lidará com as finanças do Estado. Pelos cálculos do Tesouro Nacional, equilibrar as contas no ano que vem significaria que a dívida pública voltaria a cair em 2025, depois de alcançar 76% do PIB (ela era de 51% em 2013, atingiu o pico de 87% em 2020 e voltará a subir neste ano).
Se um país gasta mais do que arrecada, sem a perspectiva de equilíbrio, o governo semeia desconfiança na própria solvência, principal pilar da estabilidade monetária. Com menos confiança, o Estado precisa pagar juros mais altos a quem lhe empresta dinheiro, alimentando ainda mais a dívida. A alternativa é a incúria fiscal com inflação galopante, como ocorre na Venezuela, na Argentina e, antes do Plano Real, ocorria no Brasil. Quem paga o maior preço em ambos os casos — juros mais altos ou mais inflação — são os mais pobres. Eles é que mais sofrem com a retração da economia trazida pela necessidade do governo de pagar mais pelos empréstimos que contrai. Eles é que mais sofrem com o descontrole dos preços por não disporem de meios de preservar o poder de compra do pouco que ganham.
Essa é a realidade. E Lula deveria conhecê-la perfeitamente. Pelo menos a conhecia em 2003, quando assumiu seu primeiro mandato. A confiança depositada pelos agentes econômicos em um novo governo Lula durante a campanha do ano passado derivou em boa parte da experiência e da memória daquele presidente que, na campanha de 2002, assinou a Carta ao Povo Brasileiro afirmando: “Vamos preservar o superávit primário quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos”. Simples, cristalino — e sensato.
Não ficou nas palavras. Ao assumir em 2003, Lula imediatamente elevou a meta de superávit primário de 3,75% para 4,25% do PIB. No final daquele ano, o resultado foi de 2,3%, acima dos 2,2% alcançados em 2002 e de toda a série histórica até então. No ano seguinte, o governo Lula alcançou 2,7%, recorde até hoje. A inflação, que vinha subindo e chegara a 12,5% em 2002, foi derrubada a 5,7% em 2005, graças a juros catapultados a 26,5% no início do governo. Tudo isso com Antonio Palocci no Ministério da Fazenda e Henrique Meirelles no Banco Central, sob as bênçãos de Lula. A busca pelo equilíbrio fiscal em nada impediu o governo de promover programas sociais importantes: Bolsa Família, Prouni, cotas raciais, Luz para Todos, só para citar alguns.
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O Globo
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