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quinta-feira, 12 de junho de 2025

Provas obtidas por VEJA mostram que Mauro Cid mentiu no STF sobre mensagens

 Quinta, 12 de junho de 2025

Foto: Reprodução

A defesa de Jair Bolsonaro nunca escondeu que uma das estratégias para tentar livrar o ex-presidente da acusação de golpe é desqualificar as revelações feitas pelo tenente-coronel Mauro Cid. O ex-ajudante de ordens fez um acordo de delação premiada e, em troca de benefícios, ajudou a PF a montar o quebra-cabeça do suposto plano urdido no fim de 2022 para anular as eleições, impedir a posse de Lula e manter o ex-capitão no poder. Na segunda 9 e na terça 10, o Supremo Tribunal Federal começou a interrogar os oito réus acusados de integrar o núcleo central da conspirata. Cid foi o primeiro a ser ouvido. De uma maneira geral, repetiu boa parte do que já havia dito antes. Em vários momentos, no entanto, soou tatibitate ao narrar certas passagens e foi acometido por alguns estranhos lapsos de memória. Ao longo de quase quatro horas de depoimento, repetiu incontáveis vezes “não me lembro” e “não me recordo”.

DETALHES - Cid conta que prestou depoimento durante três dias e reclama de manipulação
DETALHES - Cid conta que prestou depoimento durante três dias e reclama de manipulação (./.)

Uma novidade capaz de provocar uma turbulência surgiu no final da audiência, quando um dos advogados de Jair Bolsonaro, Celso Vilardi, fez uma pergunta fortuita. “Quero saber se ele fez uso em algum momento para falar de delação de um perfil no Instagram que não está no nome dele”, indagou. Cid disse que não. O defensor do ex-presidente insistiu: “Ele nunca usou perfil de mídia social para falar com ninguém?”. Cid, de novo, garantiu que não. “Conhece um perfil chamado @gabrielar702?”, tentou mais uma vez o advogado. Cid, nesse momento, gaguejou: “Esse perfil, eu não sei se é da minha esposa”.

PERSEGUIÇÃO - O ex-ajudante de ordens diz que se sentiu pressionado e que os investigadores teriam um objetivo preestabelecido, que era prender o ex-presidente
PERSEGUIÇÃO - O ex-ajudante de ordens diz que se sentiu pressionado e que os investigadores teriam um objetivo preestabelecido, que era prender o ex-presidente (./.)

Era uma armadilha — e o tenente-coronel, ao que parece, caiu nela sem perceber. Ao assinar o acordo de delação premiada com a Justiça, ele assumiu o compromisso de falar a verdade, manter em segredo o teor de suas revelações, não ter contato com outros investigados nem usar redes sociais. Vilardi sabia que Cid havia desrespeitado ao menos duas determinações impostas pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do processo no STF — e as provas de que isso de fato aconteceu estão em um conjunto de mensagens trocadas entre o tenente-coronel e uma pessoa do círculo próximo a Jair Bolsonaro. VEJA teve acesso aos diálogos. Eles mostram que Cid, já na condição de delator, fazia jogo duplo. Enquanto fornecia à PF informações sobre a movimentação antidemocrática, contava a pessoas próximas uma versão completamente diferente do caso. Nessas conversas, revelou a terceiros o teor de seus depoimentos à PF e bastidores do que se passava durante as audiências. O militar fala em pressões, conta que o delegado responsável pelo inquérito tentava manipular suas declarações e diz que Alexandre de Moraes já teria decidido condenar alguns réus antes mesmo do julgamento. Essas confidências, em tese, podem resultar na anulação do acordo de colaboração e, por consequência, na revisão dos benefícios dados ao tenente-coronel. Há um problema adicional para o delator. Antes do início do interrogatório, Cid foi advertido por Moraes sobre a obrigação de falar apenas a verdade. Ao afirmar, na sequência, que não usou a rede social, ele mentiu.

NA MIRA - Moraes: magistrado é alvo de comentários e apelidos pouco amigáveis
NA MIRA - Moraes: magistrado é alvo de comentários e apelidos pouco amigáveis (./STF)

As mensagens obtidas por VEJA foram trocadas entre 29 de janeiro e 8 março de 2024. O acordo de colaboração premiada havia sido homologado por Alexandre de Moraes cinco meses antes. Nesse período, Cid usava tornozeleira, tinha obrigação de se apresentar semanalmente a um juiz e já estava proibido de se comunicar com investigados e falar sobre o conteúdo de sua delação. Por alguma razão, ele decidiu burlar a determinação de Moraes, usando o Instagram @gabrielar702 para conversar com colegas e pessoas diretamente interessadas no andamento das investigações. Nos diálogos, fala abertamente das longas oitivas que estava tendo de enfrentar — “Foram três dias seguidos” — e do desconforto em relação ao trabalho dos investigadores — “Toda hora queriam jogar para o lado do golpe… e eu falava para trocar porque não era aquilo que tinha dito”. Há várias citações a Alexandre de Moraes, identificado pelas iniciais “AM”. Em uma delas, o tenente-coronel diz ao interlocutor que o “jogo é sujo”, que as petições dos advogados não adiantam nada e que o ministro “já tem a sentença pronta” para condenar ele, o “PR, Heleno e BN” — referência a Jair Bolsonaro e aos generais Augusto Heleno e Walter Braga Netto.

ARMADILHA - Vilardi e Oliveira Lima: advogados pretendem usar mentira para pedir anulação da delação premiada
ARMADILHA - Vilardi e Oliveira Lima: advogados pretendem usar mentira para pedir anulação da delação premiada (Ton Molina/STF)

Em outra conversa, ao fazer considerações sobre os depoimentos que estava prestando, o delator é indagado sobre a postura do delegado que conduzia o inquérito. “Sabe tentar te conduzir para onde ele quer chegar”, ressaltou Cid. O interlocutor então pergunta se o “ele” é Alexandre de Moraes ou Luís Roberto Barroso, presidente do STF. Cid responde: “AM é o cão de ataque”, “Barroso é o iluminista pensador”. E arremata: “Quem executa é o AM”. As críticas a Moraes, aliás, são constantes, com algumas variações de nível. O ministro, segundo o delator, “tem talento”, mas para ser um “grande pensador Netflix”. “Não precisa de prova!!! Só de Narrativas!!!! E quando falam de provas… Metem os pés pelas mãos… Como foi com FM… que não viajou aos EUA”, ressalta o tenente-coronel, se referindo a Filipe Martins, o ex-­auxiliar de Bolsonaro preso por ordem do ministro por supostamente ter tentado fugir do país, o que até hoje não foi comprovado.

PRERROGATIVA - Gonet: o procurador-geral da República também pode pedir o rompimento do acordo de colaboração
PRERROGATIVA - Gonet: o procurador-geral da República também pode pedir o rompimento do acordo de colaboração (Antonio Augusto/STF)

Cid se mostra resignado com o futuro. “Eu acho que já perdemos… Os Cel PM (coronéis da Polícia Militar do Distrito Federal) vão pegar 30 anos… E depois vem para a gente”, diz. Uma das alternativas naquele momento para evitar as prisões de todos, na avaliação dele, seria um movimento conduzido pela cúpula do Congresso. “Só o Pacheco ou o Lira vai (sic) nos salvar. O STF está todo comprometido. A PGR vai denunciar”, diz. A outra alternativa vislumbrada era a ascensão de Donald Trump, então candidato a presidente nos Estados Unidos, que poderia impor sanções ao Brasil. “Uma coisa que pode mudar… é uma vitória do Trump… E o Brasil começar a ter sanções… igual Nicarágua e Venezuela”, escreveu, antecipando, sem saber, o que, de fato, pode ocorrer. Cid também faz questão de deixar claro nas mensagens que não fez acusações de golpe contra Jair Bolsonaro. “Eu falava que o PR não iria fazer nada”, diz. O delator fala do desejo de reagir a Moraes e das estratégias de defesa dos seus advogados, que ele considera inúteis. “No final todo mundo acha que não dará em nada… Só eu voltar para a cadeia… junto com o PR”, diz.

PETARDOS - O tenente-coronel faz críticas aos ministros do Supremo, particularmente a Alexandre de Moraes, relator do processo sobre a suposta trama golpista
PETARDOS - O tenente-coronel faz críticas aos ministros do Supremo, particularmente a Alexandre de Moraes, relator do processo sobre a suposta trama golpista (./.)

Braço direito de Bolsonaro durante os quatro anos de governo, o tenente-coronel acompanhava reuniões e conversas de toda natureza e tinha acesso à cúpula militar. Em agosto de 2023, convencido de que poderia ser condenado a até trinta anos de prisão, o tenente-coronel decidiu delatar. As revelações dele foram consideradas fundamentais para a apresentação da denúncia contra o chamado “núcleo crucial” da tentativa de golpe — formado pelo ex-presidente, os ex-ministros Walter Braga Netto, Augusto Heleno, Anderson Torres e Paulo Sérgio Nogueira, pelo ex-chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem e pelo ex-comandante da Marinha Almir Garnier. Cid foi citado 179 vezes na peça de acusação da Procuradoria-Geral da República e prestou nove depoimentos antes da fase de interrogatório. Sua colaboração serviu como linha mestra da denúncia. As provas fornecidas por ele incluíram nove celulares, três computadores, além de tablets e um sem-número de mensagens e arquivos que deram dimensão, rosto e gravidade à tentativa de golpe.

DEPOIMENTOS - Andrei Rodrigues, diretor da PF: queixas de Cid sobre os delegados que conduziram os inquéritos
DEPOIMENTOS – Andrei Rodrigues, diretor da PF: queixas de Cid sobre os delegados que conduziram os inquéritos (Ton Molina/Fotoarena/.)

O acordo de colaboração tem cláusulas rígidas. Para ter direito a benefícios, Cid não pode mentir, omitir, desviar a investigação com versões conflitantes nem proteger ninguém. No interrogatório do STF, ladeado de Bolsonaro e outros cinco integrantes da alta cúpula do antigo governo — Braga Netto, que está preso, prestou depoimento por videoconferência—, ele reafirmou ter presenciado reuniões entre o ex-presidente e militares nas quais foram discutidas medidas que poderiam ser implementadas para impedir a posse de Lula, disse que Bolsonaro acreditava em fraude nas urnas eletrônicas, repetiu que o ex-candidato a vice enviou dinheiro para os militares das Forças Especiais do Exército, reproduziu os xingamentos que eram proferidos contra o ministro Alexandre de Moraes e confirmou ter ouvido que o então comandante da Marinha teria colocado suas tropas à disposição do ex-presidente. Para o Ministério Público, essas informações, aliadas a documentos e outros depoimentos colhidos durante a investigação, não deixam dúvidas de que Bolsonaro e seus auxiliares tentaram um golpe de Estado no fim de 2022.

PROCESSO - Sessão histórica: o interrogatório dos réus durou dois dias e não produziu novidades sobre o caso
PROCESSO - Sessão histórica: o interrogatório dos réus durou dois dias e não produziu novidades sobre o caso (Antonio Augusto/STF)

O delator, no entanto, também minimizou a relevância do que havia contado. Segundo ele, apesar de ter analisado minutas que previam anular a eleição e até a prisão de ministros do STF, Bolsonaro nunca pensou em golpe — algo claramente sem sentido dentro do contexto. Muitos dos diálogos comprometedores encontrados nos telefones dos envolvidos, inclusive no dele, seriam “conversas de bar”, “bravatas” ou lamúrias. Disse que uma de suas funções era servir de “anteparo” do presidente, evitando que ideias e propostas esdrúxulas chegassem ao chefe. Afirmou ainda não se lembrar ao certo em que local do Alvorada teria recebido de Braga Netto um maço de dinheiro para pagar militares que supostamente atuariam na operação golpista. A postura pouco firme do delator no Supremo abriu o flanco para a defesa de alguns réus. O general negou ter endossado ou financiado planos golpistas, alegou que não deu ordens para desqualificar militares que, segundo a acusação, eram reticentes ao golpe e acusou Cid de mentir a seu respeito. Principal atingido com a delação de seu antigo auxiliar de confiança, Bolsonaro também negou todas as acusações. Refutou ter planejado um golpe de Estado, resumiu reuniões com militares a conversas informais, disse que as discussões que teve miravam uma “alternativa constitucional” e afirmou não ter mexido em minuta golpista ou dado ordens para prender autoridades. Para a defesa do ex-presidente, o interrogatório de Cid foi a melhor coisa que aconteceu desde o início do processo.

JOGO DUPLO - Cid fala que a sentença já estaria pronta antes do julgamento e, mais uma vez, defende o ex-presidente das acusações de liderar a conspirata
JOGO DUPLO – Cid fala que a sentença já estaria pronta antes do julgamento e, mais uma vez, defende o ex-presidente das acusações de liderar a conspirata (./.)

Pelas cláusulas do acordo do ex-ajudante de ordens, se a delação for cancelada, ele volta a responder pelos mesmos crimes dos demais réus. Se condenado, pode pegar até quarenta anos de prisão. Em troca das revelações, o tenente-coronel pediu a concessão de perdão judicial ou uma condenação não superior a dois anos. Como ele já ficou preso preventivamente por cinco meses e está com tornozeleira há mais de dois anos, a pena já estaria devidamente cumprida. Livre da cadeia, Cid poderia seguir a carreira militar, inclusive com direito a promoções. Os benefícios da delação são extensivos ao pai dele, o general Lourena Cid, que está sendo investigado por ajudar Bolsonaro a vender presentes recebidos durante o exercício do mandato, à esposa e à filha. Encerrado o processo, todos ainda teriam direito à segurança da Polícia Federal. Tudo isso agora corre risco. “Como grande parte do conjunto probatório demonstrativo da autoria delitiva decorreu da colaboração premiada, se ela cair, de uma certa maneira isso vai ensejar o enfraquecimento geral do conjunto probatório”, diz Gustavo Sampaio, professor de direito constitucional da Universidade Federal Fluminense, falando em tese.

O teor das mensagens no Instagram é parecido com os áudios obtidos e divulgados por VEJA no ano passado, ocasião em que Cid acabou preso e seu acordo de delação por pouco não foi rompido. Na época, justificou que as conversas eram um mero desabafo de quem atravessava uma situação difícil. Essa explicação, se repetida hoje, provavelmente será insuficiente. Além de desrespeitar as regras de confidencialidade, ele dessa vez mentiu ao tribunal, o que é crime. Todos os envolvidos no caso podem pedir o rompimento do acordo de delação e utilizar a transgressão de Mauro Cid para tentar colocar em dúvida boa parte do que foi levantado no processo — hoje são quase 80 terabytes de evidências — ou mesmo usar a descoberta para conseguir uma divergência na Primeira Turma e transferir os embates para o plenário do STF, onde, acreditam, o caso pode tomar outro rumo. A PF e a PGR também podem requisitar a rescisão da delação. A decisão caberá a Alexandre de Moraes. Seja qual for ela, vale lembrar mais uma vez: a acusação elencou muitas provas, não se fiando apenas nas palavras do tenente-coronel. Em tempo: o perfil @gabrielar702 foi retirado do ar logo depois do interrogatório do ex-ajudante de ordens.


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