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sexta-feira, 8 de maio de 2020

O passaporte para os imunes: médicos divergem sobre a adoção da medida para aliviar restrições aos “coronapositivos”

Sexta, 08 de Maio de 2020

Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado

A ideia de distribuir certificados a quem pegou Covid-19 e está curado já foi aventada pelos governos de vários países, como Chile, Itália, Alemanha, Estados Unidos e Reino Unido. Apelidados “passaportes de imunidade”, tais documentos permitiriam circular e trabalhar livremente durante as quarentenas. Os portadores – conhecidos como “coronapositivos” – teriam mais liberdade para cuidar dos infectados no combate à pandemia. Mais que isso, teriam papel decisivo para a retomada gradual e responsável da atividade econômica.

Mas a medida também desperta controvérsia, por dividir a sociedade ao meio, conferir privilégios e, indiretamente, incentivar comportamentos irresponsáveis que levem à infecção. Embora os curados adquiram imunidade (como constatam estudos recentes aqui e aqui), os cientistas ainda debatem o grau e a duração dela. Nem todos os testes de anticorpos são confiáveis. Tudo isso tem gerado entre os médicos um debate intenso a respeito da questão.

Duas das principais revistas médicas do planeta – a britânica The Lancet e a americana Jama (da Associação Médica Americana) – publicam nesta semana artigos defendendo posições antagônicas sobre os “passaportes de imunidade”. Na Jama, dois artigos os recomendam. Na Lancet, outro artigo os encara com reserva. Entender as posições dos dois lados permite avaliar as condições necessárias para adoção da medida.

O caso contrário aos passaportes se baseia em dois tipos de argumento: científicos e sociais. Do ponto de vista científico, não há consenso sobre quão imunes os infectados ficam depois de pegar a doença, nem confiança nos testes disponíveis que proliferam no mercado. “Não está estabelecido ainda se a presença de anticorpos detectáveis confere imunidade a infecções futuras nos humanos e, em caso positivo, que quantidade é necessária para proteção e quanto tempo dura tal imunidade”, escreve na Lancet Alexandra Phelan.

Os casos de curados que voltam a testar positivo têm sido atribuídos a falhas nos testes. Seja por tal motivos ou por limitação da imunidade, diz Phelan, seria temerário adotar os passaportes sem saber quão protegidos estariam os portadores dos passaportes.

A segunda linha de argumentação contra os passaportes é social. Para Phelan, eles podem criar um estigma, ao impor restrições artificiais a quem pode ou não participar das atividades livremente. Haveria um incentivo perverso a contrair a Covid-19 para poder trabalhar, em particular nos grupos economicamente mais vulneráveis. “Passaportes de imunidade podem acabar tirando dos governos o dever de adotar políticas de proteção aos direitos econômicos, habitacionais e de saúde, ao fornecer um remédio rápido.”

Phelan cita ainda o risco inerente de corrupção que todo privilégio concedido pelo governo costuma gerar. “Inequidades étnicas, raciais e socioeconômicas poderão se refletir na administração de tais certificados, dirigindo quem pode acessar testes de anticorpos, quem está na frente da fila”, afirma. Nem sempre as leis vigentes contra a discriminação seriam suficientes para evitar desvios.

Tais leis convivem com documentos como a “Carte Jaune”, a prova de que o portador foi vacinado para febre amarela exigida para entrada em vários países. Mas há, diz Phelan, uma diferença. “A principal distinção é a natureza do incentivo. Certificados de vacinação incentivam o indivíduo a se vacinar contra o vírus, um bem social. Em contraste, os passaportes de imunidade incentivam a infecção.”

O caso favorável aos passaportes procura desmontar cada um desses argumentos. Em artigo na Jama, Goving Persad e Ezekiel Emanuel preferem chamá-los de “licenças” e os comparam a uma carteira de motorista. “Elas não deveriam ser avaliadas em comparação a um cenário de normalidade, mas às alternativas de impor restrições rigorosas durante muitos meses ou de permitir atividades que poderiam disseminar infecções”, escrevem.

O primeiro argumento que usam em defesa da medida é que ela serve não para restringir liberdades, mas para ampliá-las. Confere direitos a parte da sociedade, de modo que reduz os riscos aos demais – exatamente como uma carteira de motorista permite que parte dos cidadãos dirija, desde que de modo responsável. “Licenças baseadas em imunidade não violam o tratamento igual dos cidadãos, porque os fatores usados para conferir a licença não são discriminatórios, como raça ou religião, mas estão apoiado em evidência sólida”, afirmam.

Permitir a retomada de atividades aos portadores de tais licenças, segundo Persad e Emanuel, beneficiaria a parcela mais vulnerável da sociedade, que de outra forma estaria impedida de trabalhar mesmo que imune. Também beneficiaria os demais aos contribuir para a retomada da economia e diminuir as infecções, já que hospitais e centros de tratamento estariam sob cuidados dos “coronapositivos”. Eles reconhecem, porém, quatro desafios práticos na implementação:

Garantir a qualidade dos testes por meio da certificação pela autoridade pública sanitária;

Ter um grau razoável de certeza sobre o período de imunidade assegurado aos que já contraíram a doença (tópico ainda objeto de debate entre os cientistas);

Tentar mitigar o incentivo às infecções garantindo licenças a grupos menos afetados pela doença (como crianças ou estudantes) ou criando uma estratégia específica para aqueles sob maior risco de contrair o vírus (como profissionais de saúde);

Projetar os certificados, em formato físico ou digital, de modo a reduzir o risco de fraudes por meio de sistemas de criptografia ou biometria (como já se faz com vistos e passaportes).

Os dois concluem que, “embora as licenças exijam implementação cuidadosa e base científica para ser éticas na prática, nada as torna anti-éticas em princípio”.

Em comentário também na Jama, Mark Hall e David Studdert basicamente repetem os mesmo argumentos e adotam uma postura pragmática. “Idealmente, uma compreensão científica mais clara e deliberação cuidadosa precederia qualquer política pública ou privada que aliviasse as restrições com base em testes positivos”, escrevem. “Mas parece que o ideal de uma abordagem calculada, baseada em evidência, será atropelado pela esperança e pela demanda por testes.”

A sociedade, afirmam, acabará naturalmente reagindo antes da formação do consenso sobre a melhor política. Testes positivos mudarão o comportamento de parcela da população. Cairá o respeito às restrições. “Mesmo sem a certificação de imunidade autorizada, as pessoas começarão a se autocertificar, com menos precisão e credibilidade do que se o certificado fosse oficial.”

Blog do Helio Gurovitz – G1

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