As notícias de morte espantam a esperança
no Sertão de Pernambuco. Onde se chega, o cheiro de miséria espalha-se
pela terra esturricada. Vive-se de contar bicho morto, chorar o feijão
perdido, esperar por uma água que não vem. No quintal do agricultor
Cláudio José da Silva, 36 anos, a humilhação é maior. A vaca esquálida,
de tão fraca, desistiu de comer. Bicho e homem não precisavam passar por
isso. A poucos quilômetros dali, a bilionária obra
da transposição do Rio São Francisco vende a promessa de um Sertão
altivo, produtivo, com o qual Cláudio já cansou de sonhar. "A obra tá
parada. Esse ano tá perdido de tudo. A gente veio para cá porque
disseram que a transposição ia começar por aqui. Até agora, não serviu
de nada", lamenta o homem, enquanto ajeita a corda que segura o pescoço
do bicho caído. Um derradeiro esforço para evitar que a morte chegue
mais rápido.
Cláudio espia o futuro enfiado no
atraso. O Assentamento Curralinho do Angico, a comunidade onde mora, na
zona rural de Floresta, município no Sertão do São Francisco, fica
próximo à Barragem de Areias, a primeira a ser inundada pelas águas do
Velho Chico. O caminho para o assentamento margeia o extenso canal de
concreto que permitirá o milagre da transposição. A grandiosidade da
obra incompleta mais oprime que conforta. "Tanto dinheiro gasto e a
gente aqui morrendo de sede", revolta-se o agricultor. Todos os açudes
da região estão secos. Os que ainda carregam uma laminha são uma
armadilha fatal para os bichos. Atrás do fio de água, os animais ficam
atolados no lamaçal e viram comida para os urubus.

No dia em que a equipe do JC visitou o
assentamento, chegou com a notícia de mais uma baixa. "Um cavalo foi
achado morto no açude de lá, hoje de manhã", avisa, ainda no Centro da
cidade, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Floresta,
Elias Eugênio da Silva. Encontramos o bicho com o corpo coberto de lama e
cercado de urubus. "Deve ter morrido há pouco tempo mesmo", confirma o
sindicalista. Em torno do açude quase seco, as aves pretas faziam nova
vigília, à espera de mais uma presa. A fome e a sede dizimaram o
rebanho. "Floresta possuía cerca de 250 mil caprinos e ovinos. Com os
dois anos de estiagem, esse número foi reduzido à metade", contabiliza o
presidente do sindicato.
SOM POR FARELO - Para quem vive de
quase nada, manter em pé os poucos animais que ainda resistem é
desesperador. Maria de Fátima Gomes, 57, chegou ao extremo. Vendeu
geladeira, aparelho de som. Trocou tudo por farelo. O saco com 50 quilos
de ração custa R$ 60 e o fiado no armazém já passava dos R$ 2 mil. "Só
podia pegar mais ração, se pagasse. Em casa, só ficaram as camas. Era
isso ou ver os bichos se acabarem de vez." Maria de Fátima mora no
Riacho do Ouro, uma das áreas de Floresta mais castigadas. O vizinho
dela, o agricultor Manoel Afonso dos Santos, diz que nos seus 82 anos de
vida nunca viu seca tão braba. Para espantar o fedor de mais uma vaca
morta, teve que queimar o bicho, largado na beira da estrada. Na barriga
da vaca, tinha até saco plástico e resto de roupa. O desespero do homem
é o mesmo do animal.
Embora a transposição não tenha sido
pensada para matar, prioritariamente, a sede do pequeno agricultor, quem
vê o sofrimento de perto não aceita a exclusão. "É onde o governo está
colocando bilhões de reais. Então vamos exigir que ela traga algum
benefício para os mais pobres", diz o presidente do sindicato rural de
Floresta. No fim deste mês, ele se junta a outros líderes do semiárido e
vai até Brasília cobrar à presidente Dilma Rousseff a conclusão da obra
gigantesca, tão secular quanto o drama da seca.
Pensada pela primeira vez no Brasil
de Dom Pedro II, em 1847, a transposição se arrasta, sem fim, assim como
os relatos do flagelo sertanejo. Na década de 50, custaria cerca de US$
300 milhões. Décadas se passaram, o projeto foi refeito, ampliado, e
hoje, a conta já chega a R$ 8,2 bilhões. O sociólogo Antônio Barbosa,
coordenador de um dos programas da entidade Articulação para o Semiárido
(ASA), que reúne ONGs que atuam na região, diz que a primeira notícia
de estiagem remonta aos tempos do descobrimento do Brasil, em 1559, no
território que atualmente é ocupado pelo Estado da Bahia. De lá para cá,
ele afirma que já foram registradas nada menos do que 72 secas. Algumas
entraram para a história como as de 1877, 1915, 1952 e, mais
recentemente, a de 1982.
"Podemos dizer que a deste ano é a
maior deste século, a primeira grande estiagem do período pós-ditadura.
Não há desculpa para o governo não ter se preparado com ações
estruturadoras, que se antecipassem ao período da estiagem", afirma o
sociólogo, numa cobrança tão antiga quanto legítima. Como as ações
novamente não vieram, o cortejo da calamidade reproduz os velhos
retratos de sempre. Na estrada do Sítio Boa Rama, zona rural de Bodocó,
no Sertão do Araripe, a carroça carrega os baldes de água tirada do
açude barrento e distante. Quem guia o cavalo é Leandro, um garoto, meio
tímido meio desconfiado, de apenas 12 anos. Ele não gosta de foto. O
pai, Edmilson Rodrigues de Freitas, 40, vai sentado atrás, pendurado na
carroça. Pai e filho engolidos pelo monstro da seca, um flagelo que
atravessou os séculos sem nunca ter sido domado.
Ciara Carvalho /N10/portal paulista online
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