Sexta, 24 de Fevereiro de 2018
Policial militar do Rio na zona norte do Rio de Janeiro – Danilo Verpa/Folhapress
Uma medida adotada pelo governo do Rio na década de 1990 e acentuada ao longo dos anos levou a Polícia Militar a um colapso em sua organização hierárquica. Houve uma promoção desmedida de policiais ao posto de sargento e, na prática, a patente passou a ter mais homens do que seus subordinados, os soldados.
Na ruas do Estado, a situação levou a improvisos operacionais e interferiu diretamente na qualidade do policiamento, segundo especialistas em segurança pública. Foi também um agravante para as finanças do Rio –já que os salários ficaram maiores, mesmo sem mudança de tarefas.
Esse cenário é um dos problemas para a intervenção na segurança estadual, decretada pelo presidente Michel Temer (MDB) e aprovada pelo Congresso nesta semana.Caberá ao general do Exército Walter Braga Netto, nomeado interventor, comandar as polícias Militar, Civil, bombeiros e montar as estratégias para conter a violência.
Segundo dados da PM fluminense obtidos pela Folha, a corporação tem cerca de 46 mil homens e mulheres na ativa. Desse total, praticamente um terço (15.070) é composto por sargentos –policial que, pela hierarquia militar, fiscaliza e orienta os subordinados e dá padrão às atividades desenvolvidas.
Já os soldados eram só 14.872 até meados do ano passado e os cabos, 7.319. “É mais cacique do que índio”, afirma a antropóloga Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da UFF (Universidade Federal Fluminense) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O contingente em São Paulo é de 84.652 PMs, que incluem os bombeiros. Do total, há 10.604 sargentos, 31.555 soldados e 35.836 cabos.
HISTÓRICO
A distorção teve início no ano eleitoral de 1996, quando o então governador Marcello Alencar (PSDB) criou um plano de carreira que previa a promoção de soldados, cabos e sargentos da PM pelo tempo de serviço. Dessa forma, um soldado com dez anos de serviço se tornaria cabo e, cinco anos depois, era promovido a sargento sem a necessidade de passar por concursos ou outra medição de meritocracia.
Total no Rio: 45.583
Total em São Paulo: 84.422
1 – Em 1996, praças passaram a ser promovidos só por tempo de serviço; em SP, promoção depende de concurso
2 – O soldado era promovido para cabo após 10 anos de serviço e, com 15, se tornava sargento
3 – Em 2012, uma alteração legislativa reduziu esse período para 6 e 12 anos, respectivamente
No Estado faltam 22.410 soldados
Mas sobram 8.086 sargentos
Fonte: Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
A situação foi agravada com a alteração do decreto em 2012, na gestão Sérgio Cabral (MDB). O primeiro intervalo de promoção foi reduzido de dez para seis anos. O segundo, de 15 para 12 anos.
Também foi alterada a obrigação de o PM ter uma ficha com classificação de comportamento “ótimo” e “excepcional”. Para ser promovido precisaria estar no “bom”.
Até o final do passado, segundo documentos obtidos pela reportagem, o deficit no número considerado ideal de soldados na corporação era de 22.410 vagas, enquanto os cargos de sargento tinham excedente de 8.086 policiais. “Eles inverteram e perverteram a cadeia de comando. Ela foi sabotada internamente por interesses eleitoreiros”, diz a antropóloga da UFF.
Em SP, por exemplo, um soldado pode se tornar cabo e, depois, só vira sargento mediante aprovação em um concurso interno da polícia.
IMPROVISO
A quantidade de sargentos não representa redução do efetivo de patrulhamento na rua. Mas graduados são escalados em funções subalternas, gerando cenas incomuns no meio militar –como um sargento dirigindo para outro sargento um carro de patrulha.
Também há sargentos como sentinelas nas entradas de batalhões, conforme a Folha constatou ao longo da semana, posições geralmente destinadas a soldados recrutas. Essa banalização da função de sargento traz efeitos para toda a cadeia de comando porque se perde a essência do cargo de fiscalizar e orientar os subalternos e exigir o cumprimento de regras e boas práticas na função.
Na prática, as ruas do Rio contam com um policiamento mais caro (já que o salário de um soldado é de R$ 2.743, contra R$ 4.236 de um sargento) e menos eficiente. “Você perde um soldado, mas não ganha um sargento”, diz o especialista em segurança José Vicente da Silva (coronel da reserva da PM paulista), que classifica a situação do Rio como “aberração”.
Em São Paulo, afirma o coronel, um policial para se tornar sargento precisa ser primeiro cabo da PM e, depois, participar de concorrido concurso e, se aprovado, frequentar curso de aperfeiçoamento profissional por um ano. Para o sociólogo Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os dados demonstram um “colapso organizacional” do policiamento ostensivo no Rio.
“A situação mostra que a estrutura da polícia precisa ser revista. Precisa de uma rearquitetura. O sargento é o elo de supervisão, assim como tenente, tem outro perfil na tropa”, afirma Lima.
DESEQUILÍBRIO
O desequilíbrio da tropa no patrulhamento das ruas do Rio se agravou nos últimos 12 anos em razão da política de implantação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), com o discurso de utilizar soldados recém-formados, não “contaminados” pelo alto índice de corrupção da tropa fluminense.
Essa política levou a uma concentração de quase metade de todos os soldados da PM do Rio trabalhando nas UPPs. Eram no ano passado 7.167 homens espalhados em 38 comunidades fluminenses.
Nessas unidades, o número de soldados chegava a quase 80% do efetivo. Nos batalhões de área, responsáveis pelo patrulhamento do “asfalto”, esse número não chega 20%.
Para o coronel da reserva Carlos Fernando Ferreira Belo, presidente da associação dos oficiais do Rio, a política da implantação das UPPs não respeitou as particularidades da estrutura militar ao dar aos capitães dessas unidades uma tropa maior do que a de batalhões da mesma região sob comando de coronéis.
“Há áreas em que capitães comandam 600 homens e o coronel, 150”, afirma. Questionada, a PM do Rio não se manifestou.
Folha de São Paulo