Domingo, 25 de outubro de 2015
Por François Silvestre

(para Águeda Zerôncio e Eva Barros)
Não se trata da prática notarial nem dos traslados cartoriais. Muito menos da prática burocrática, seja das justificativas ou dos requerimentos. Não. Isso aí não é escritura, na dureza do escrever, ou na arte de tentar substituir o ruído sonoro dos fonemas.
Trato aqui da escritura doída a que se referiu Clarice Lispector. “Antes de mais nada, pinto pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura”.
Em Clarice a dureza da escrita não era dificuldade na criação. Era a impossibilidade de espantar a dor íntima que fluía intensa no texto tenso.
De sua terra, na distante Ucrânia, dizia ela nunca ter posto os pés, nem para sair, posto que o fizera ainda no colo. E se fez recifense de pátria adotiva. Ao passar por Natal registrou: “Essa cidadezinha sem caráter”. De Brasília: “Uma prisão a céu aberto”.
Num veraneio de Muriú, Guida Zerôncio preparava a pós-graduação com base na obra de Clarice. Lacan e a ucraniana roubaram a cena naqueles dias. Até Omar Guerreiro, desligado da literatura, mas muito inteligente, fazia citações de “A Hora da Estrela” e “Perto do Coração Selvagem”.
“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”. Se há um arquétipo que ateste a conceituação de Lacan sobre a fotografia do inconsciente que o texto produz, esse modelo é Clarice. E na poesia, Zila Mamede.
Em Graciliano Ramos a dureza tinha duas dimensões restritivas. A restrição humana do Sertão e a necessidade de enxugar a linguagem. Na sua obra mais popular, ele depenou até o título. Retirou a grandeza substantiva de “O Mundo Coberto de Penas” para a escassez adjetiva de “Vidas Secas”.
Guimarães Rosa plagiou de garimpo o som vocálico das andanças, na voz dos modelos eleitos por seus ouvidos de nhambu. “Pela fraqueza do meu medo e pela força do meu ódio, acho que fui o primeiro que cri”.
Ao seguir essas veredas, o moçambicano Mia Couto confirmou Lacan: “O tiro certeiro sempre carrega algo de quem dispara”.
O autor fotografa o texto, mas é o texto quem o revela. Quando a escrita for apenas palavras postas, sem o condão da “dura escritura”, o texto será um daguerreótipo com a lente tapada. A revelação revelar-se-á uma mancha escura. Uma coisa é escrever. Outra é redigir.
“Na várzea grande do Capibaribe, durante o mês de Agosto, reúnem-se em Congresso todos os ventos do mundo”. Joaquim Cardozo, mestre do cálculo matemático e da poesia aritmética. Dizia ter vindo para uma estação de águas nos olhos da paixão.
Mário Quintana, que a Academia de Letras rejeitou, foi bem maior do que a imortalidade das pompas infantis, cujas rimas das crianças foram as primeiras inspirações do poeta. “Procurando os seus guardados no fundo de uns baús inexistentes”.
Té mais.
François Silvestre é escritor
* Originalmente publicado no Novo Jornal.
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