Quarta,12 de novembro de 2014

Todo mundo me dizia que eu tinha que esquecer tudo aquilo, que eu tinha culpa pelo que tinha acontecido, que tinha bebido muito, que precisava tocar minha vida”. O relato é de Maria*, 24 anos, estudante do 4º ano da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), que sofreu dois abusos sexuais em seu primeiro ano de curso, em 2011. Ao caso de estupro denunciado por Maria somaram-se outros relatos de violência na FMUSP: racismo, homofobia, misoginia, tortura. Os depoimentos foram dados em audiência pública realizada nesta terça-feira pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), que recebeu denúncias de violações de direitos humanos no âmbito da faculdade. Antes de iniciar os trabalhos, o deputado Adriano Diogo (PT), que preside a comissão, declarou ter sido “assediado” para que não levasse adiante a audiência sobre a FMUSP. “Nem presidindo a Comissão da Verdade eu fui tão pressionado a não realizar uma audiência. Nunca tomei um cala boca geral, e esse não foi nem indireto, foi direto. Impressionante como a gente é assediado quando tenta trazer uma sujeira que está debaixo do tapete”, afirmou. Após a audiência – que começou às 15h e terminou às 20h40 –, o deputado afirmou que o autor do assédio foi o próprio diretor da FMUSP, professor José Otávio Costa Auler Júnior. “Ele também pressionou vários outros deputados”, disse. O silêncio começa a ser rompido agora, mas os casos de estupro, trote violento e discriminação são velhos conhecidos da FMUSP. As denúncias recebidas pela comissão datam, pelo menos, de 2002, mas um dos casos mais emblemáticos de violência na instituição é ainda mais antigo, de 1999, quando o calouro Edison Tsung Chi Hsueh, de 22 anos, foi encontrado morto em uma piscina após um trote. A pressão para que as vítimas se calem é acompanhada de argumentos em nome da tradição da instituição – e sua imagem. Antes de participar da audiência na Alesp, Maria conta que participou de uma reunião com o diretor da FMUSP. “Ele me disse que a preocupação dele (com a exposição dos casos) era com a imagem da instituição”, disse a estudante sobre José Otávio Costa Auler Júnior. Os relatos chegaram ao Ministério Público, que instaurou um inquérito civil para apurar as denúncias. De acordo com a promotora de Direitos Humanos Paula de Figueiredo Silva, que está à frente do caso, existe na FMUSP uma cultura de repressão de minorias. “A princípio achei que fosse um caso pontual, mas a coisa logo se tornou um relato de violações constantes de direitos das minorias. Existe na faculdade uma realidade de discriminação e exclusão, principalmente contra mulheres e homossexuais”, disse.
De acordo com a promotora, 12 estudantes já procuraram o Ministério Público, que solicitou à FMUSP todos os procedimentos administrativos instaurados nos últimos cinco anos. Além do fortalecimento dos mecanismos de investigação, Paula defende a necessidade de apoio às vítimas, “que continuam sofrendo discriminação após denunciar os casos”. “As testemunhas relatam que a faculdade acabava não dando uma resposta efetiva às violações”, afirmou. Em depoimento na Alesp, Ana*, 22 anos, estudante do 4 ano de Medicina, relatou que foi abusada por dois garotos na festa “Cervejada”, no ano passado. Depois de denunciar o caso, viu sua vida se transformar em um inferno. “Sou tida como uma vagabunda na faculdade.” Já a violência relatada por Maria ocorreu, primeiro, na festa de recepção dos calouros, quando foi abusada por um diretor da Associação Atlética; e depois na festa “Carecas do Bosque”, quando acordou em um hospital depois de ser estuprada por um funcionário terceirizado, em uma barraca, desacordada. Maria afirma que o inquérito policial contra o estuprador está na fase final, mas diz que apenas recentemente soube que diretores da Atlética conversaram com o agressor e com testemunhas do estupro logo após o crime – e que, inclusive, impediram a entrada da polícia na festa. “Quando eu acordei, no hospital, ninguém (da faculdade) me explicava o que tinha acontecido. Mas me aconselharam a tomar os medicamentos anti-retrovirais”, disse Maria, referindo-se ao coquetel contra HIV. A fim de tentar dar fim à impunidade, Maria e Ana se juntaram a outras alunas da FMUSP – vítimas de abuso e solidárias à causa – e criaram, no final de 2013, o coletivo feminista Geni. De acordo com Ana Luiza Cunha, aluna do 3 ano da FMUSP e uma das fundadoras do coletivo, as integrantes do grupo sofrem constante discriminação. (Terra)
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