domingo, 8 de junho de 2014

Ruim é não envelhecer

Domingo - 08/06/2014 


Por François Silvestre

Ouvi muitas vezes, de amigos mais velhos, a frase pronunciada com a fisionomia na moldura de uma foto antiga: “A velhice é uma merda”. “Envelhecer é uma bosta”.

Só não envelhece quem morre novo. E quando isso ocorre o morto jovem parte deixando uma sensação de saudade mal resolvida. É uma inaturalidade, uma agressão ao natural.

O velho, não. O corpo envelhece e prepara a naturalidade do desfecho. Começa pelo arquivando de desejos. Coisas indispensáveis, na mocidade, vão se tornando arquivos, deixando lembranças e arrumando conformação. É a cerimônia do adeus, de que falava Simone de Beauvoir, ao ver no sofá a mancha de urina de Jean-Paul Sartre.

“A vida é apenas um demorado adeus”. E Esse adeus demorado ou breve é pra ser vivido intensamente. Sem culpas, preconceitos ou hipocrisia. Sem ligar para o fascismo dos costumes, que é o moralismo. E se faltar coerência, que sobreviva a honestidade.

O desejo não é mais do que a vontade de uma necessidade estimulada. A fome, a sede, a libido, são necessidades estimuladas pelo desejo. O conjunto do ciclo forma a vontade. A volição que cobra a satisfação do estímulo. Quando o corpo vai transformando a vontade numa gradação mais serena, menos impulsiva, começa a preparar o fim do ciclo, com naturalidade.


A única coisa que a velhice tem de ruim mesmo, e sem jeito, é a perda de pessoas queridas. A perda de amigos sem ser pela inimizade. Ou a imponderação dos acidentes.

Nascer é um bambo maior do que qualquer percentual restritivo de loteria. Para o seu nascimento foi preciso que a sequência de todos os ancestrais tenham sido exatamente o que foi. E se o sexo dos pais houvesse ocorrido minutos antes ou depois, certamente o espermatozoide seria outro a chegar à ovulação. É ou não é uma loteria do destino? Nascer é um acaso, morrer é uma naturalidade inevitável; e necessária à vida.

A velhice não é um castigo, é um prêmio; só chega lá quem ganhou do tempo. Só o tempo não envelhece; mas tudo que ocupa espaço envelhece e finda. Há coisas, na velhice, que não mudam do que foram na juventude. O caráter, o temperamento, os princípios. Pelo contrário, acentuam-se.

O velho impaciente foi jovem impulsivo. O velho velhaco foi jovem ladrão. Dostoievsky disse que se Deus não existisse tudo seria permitido. Não é verdade. A boa ou má ação não é matéria de fé ou de razão, mas de caráter. O mundo está entregue aos deístas, que tentam destruir o que eles dizem que Deus fez. Quem desmanda no mundo são os fervorosos; cristãos, muçulmanos e outras denominações.

O bom caráter tem no remorso o limite das ações. Seja ele deísta ou ateu. O mau caráter tem um “deus” particular que é seu cúmplice. O Diabo envelhece vitorioso porque seus combatentes teóricos são seus aliados da prática.

Té mais.

François Silvestre é escritor

* Texto originalmente publicado no Novo Jornal.



Fonte: Carlos Santos

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