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quinta-feira, 23 de maio de 2019

As falácias sobre financiamento da pesquisa científica das universidades

Quinta, 23 de Maio de 2019


Li hoje de um professor da UFRJ que “não existe ciência sem forte financiamento estatal nos EUA”, citando como exemplo Harvard, “que tem quase 4 vezes o orçamento de todas as nossas universidades federais somadas”.

Obviamente, o docente acha que o contingenciamento (não corte) de 3,75% (e não 30%) do orçamento do MEC é o fim da ciência brasileira, já que a ciência na meca do capitalismo é, segundo ele, financiada pelo pagador de impostos.

O citado professor reclama ainda da “burguesia” nacional, que ao contrário da norte-americana não tem projeto de país nem comprometimento com o futuro da nação, já que não doa dinheiro para suas universidades.

Ele tem direito a achar o que quiser. Só não pode mentir nem falsear dados e informações. Harvard, assim como a esmagadora maioria das universidades americanas, são pessoas jurídicas de direito privado organizadas sob a forma de fundações. Estão nesse grupo todas as universidades da Ivy League, mais o MIT e Stanford. A maior biblioteca privada do mundo, inclusive, é a de Harvard. As universidades lá geralmente foram instituídas por um benfeitor (que costuma dar nome à instituição que fundou – Stanford, Yale, Duke e Cornell são exemplos) que doou um “endowment” (o que no Brasil denominamos “patrimônio afetado”, uma grande quantia em dinheiro que forma um fundo perpétuo cujos juros servirão para financiar as atividades da fundação, e que, no caso de Harvard, passa de US$ 37 bilhões), alimentado por “tuitions” (taxas cobradas dos alunos, que podem passar de US$ 50.000/ano no caso de Harvard), e gerido por um comitê de gestores profissionais (não por militantes do PSOL).

Além delas, as Universidades financiam suas atividades através de doações (principalmente de ex-alunos bem sucedidos que desejam retribuir o que receberam de suas respectivas “alma-maters”), bolsas de estudo (company scholarships e sponsored degrees) oferecidas por empresas (por critérios de mérito fixados por quem concede a bolsa, possibilitando que mesmo os mais pobres tenham acesso ao ensino superior, desde que talentosos) e royalties de patentes geradas por suas pesquisas.

E esse último ponto é muito importante – existe por lá uma mentalidade fortíssima de resultados. As pesquisas mais valorizadas são aquelas que geram patentes, que por sua vez viram produtos e serviços que dão lucro.

Isso não quer dizer, obviamente, que não são feitas pesquisas em Ciências Sociais ou Humanidades – mas há uma métrica rigorosa de avaliação, geralmente envolvendo publicação em revistas de divulgação científica e publicação de livros que atraiam prestígio para o nome da universidade. Quem não é publicado, quem não é relevante, deixa de receber dinheiro, por mais “socialmente justa” que seja sua pesquisa. As universidades americanas estão repletas de justiceiros sociais, é verdade, mas a dissertação sobre o Banheirão da Lapa jamais seria financiada pelo board de Harvard.

Não existem universidades federais nos EUA, com exceção dos institutos de formação ligados às forças armadas. Existem sim universidades públicas, mas não existem universidades “grátis”: mesmo as que recebem alguma subvenção de governos locais cobram anualidades (US$ 8.000 em média, não muito distante do que cobram as universidades privadas de ponta no Brasil) e lucram com royalties de suas patentes.

É extremamente comum que empresas se estabeleçam dentro dos campi para integrar a comunidade acadêmica no desenvolvimento de seus produtos e serviços. Lá, ao contrário daqui, isso não é visto como anátema nem como violação da “autonomia universitária”, e sim como uma simbiose saudável para a universidade (que financia suas atividades sem precisar de dinheiro do pagador de impostos), para os alunos (que aplicam o conhecimento teórico adquirido na prática e já saem do curso com uma carreira útil encaminhada), para as empresas (que aproveitam a atividade criativa da academia para potencializar seus lucros e captar os melhores profissionais enquanto ainda são estudantes, antes da concorrência) e para a sociedade (que incrementa exponencialmente seu nível de vida pelas patentes de produtos e serviços geradas pela parceria empresa-universidade).

O Vale do Silício nasceu dentro de Stanford, que dispõe inclusive de incubadora para start-ups. O incentivo ao empreendedorismo, junto com a pressão por resultados, são fortíssimos.

No Brasil esse modelo é inviabilizado por interesses corporativos de professores e associações de estudantes. Qualquer iniciativa para se cobrar mensalidades, ao menos dos alunos que possam pagar, é vista como “privatização” e “elitização” (o que é irônico, dado o perfil histórico dos alunos de universidades públicas gratuitas no Brasil).

Doações para universidades públicas dependem de aprovação prévia dos respectivos Conselho Técnico-Administrativo, do Conselho Deliberativo, e do Conselho Gestor, em processo administrativo que pode durar MESES; se a doação for em dinheiro, há necessidade de aprovação pela Procuradoria Geral (contei aqui minha saga para tentar doar livros para a escola em que cursei o ensino médio: https://www.facebook.com/rafaelrosset/posts/10212097093480859).

Apesar de não haver vedação legal, as universidades em geral recusam doação de acessões artificiais (reformas) pela complexidade do processo administrativo exigido por lei. Se o Ministério Público entender que a doação implica em alguma contrapartida (por exemplo, a colocação de uma placa com o nome do doador, prática comum nos EUA, desde o nome das instituições até prédios e bibliotecas), pode recomendar a abertura de procedimento licitatório (sim, você leu direito - se você quiser doar a uma universidade pública no Brasil pode precisar ENTRAR NUMA LICITAÇÃO).

Não existe cultura de parceria entre a universidade pública e a iniciativa privada. Aliás, a livre empresa e o lucro são demonizados em nossas universidades públicas, principalmente nas Humanidades, mas não somente. Os poucos exemplos de parcerias entre empresas e universidades são apenas no setor privado (a SAP, multinacional alemã no setor de tecnologia, tem uma sede dentro do campus São Leopoldo da Unisinos, uma universidade católica, com investimento de R$ 120 milhões e geração de 700 bons empregos diretos).

O sistema norte-americano, privado até a alma, sem um centavo de dinheiro federal, e que qualquer professor marxista no Brasil (um pleonasmo, eu sei) qualificaria como “cruel” e “desumano”, ajudou a produzir a maior máquina de bem-estar e prosperidade distribuída que a humanidade já viu.

É verdade que Harvard sozinha tem quase 4 vezes o orçamento de todas as universidades federais brasileiras, mas Harvard sozinha também produziu 42 ganhadores do Prêmio Nobel, ao passo que nossas universidades federais produziram um total de ZERO laureados. O raciocínio “mais dinheiro = melhor pesquisa” até valeria se as universidades brasileiras houvessem produzido um quarto de ganhadores do Nobel quando comparadas a Harvard, mas, como vimos, não é bem assim que funciona. Tem mais coisa aí além de dinheiro. Muito mais coisa.

Resta saber se a afirmação tão falsa e errônea, vinda de um catedrático, é má-fé ou só ignorância. Dada a irrelevância e inutilidade do que se ensina nas nossas universidades hoje, eu sinceramente acredito mais na hipótese de ignorância mesmo.

Fonte: Jornal da Cidade Online

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